Eu tinha minhas próprias convicções sobre o natal e algumas
delas me diziam que eu não gostava mesmo dessa data. Talvez fosse o fato de
apenas nessa data toda a cidade resolvesse ser boazinha com os órfãos da
cidade, inclusive a mim. Era hipocrisia demais. Ou fosse o fato que foi num
natal que me apaixonei por Mary Elisabeth Rosen.
Ela era a personificação da noite e do meu medo. Olhos
brilhantes como uma estrela e os cabelos tão negros como a noite mais escura do
planeta. Meu medo maior era sua riqueza que me afastava dela embora tivéssemos
corrido pelo orfanato inteiro rindo naquele dia 25, como se ela fosse uma de
nós. Ela era tão rica que acho que suas doações mensais poderiam manter nosso
orfanato vivo sem esforço nenhum. Eu havia tomado ódio por aquela data onde ela
sorriu e me beijou na bochecha dizendo que nunca me esqueceria enquanto corria
pro pai que a esperava na porta da limusine. E ela partiu me deixando ali
sozinho, odiando o calor do beijo dela e os flocos de neve que sempre se amontoavam
naquela data.
Anos depois eu estava nessa cidade, de volta ao que seria
meu lar. Agora um recém formado operador de sistemas com um emprego na Apple e
um velho suéter usado e remendado de estimação. Presente de alguém que nunca
soube quem era. Ando de bicicleta pela rua que já acumula alguns centímetros de
neve, embora não esteja nevando agora, enquanto me dirijo a ultima entrega do
dia. Falta cerca de uma hora para meia noite e estou levando alguns doces,
queijos, uvas e vinho para a casa no fim da Rua Alfred. Estava quebrando um
galho pro velho John dono da mercearia da cidade e aproveitando e revendo
alguns amigos antigos. Depois dessa encomenda voltaria ao orfanato onde
brincaria com as crianças e seus presentes recém abertos, passaria mais uns
dias na cidade e iria embora para sempre dali. Esse era o plano. Mas ele não
funcionaria, eu percebi isso na hora que abri o portão do endereço e vi escrito
Rosen na caixinha do correio.
- Ela não está em casa. Ela não está em casa. Ela não está em
casa. Ela não está em casa. Ela não está em casa. – eu falava baixo sabendo que
rever meu amor de infância acabaria com meus planos de esquecer a cidade. Mas
ela estava.
Abriu a porta usando meias pretas escuras, sapatilha, uma
combinação de saia com pregas e uma blusa vermelha, além do gorro de papai
Noel. O cabelo negro estava curto agora e em cachos, mas os olhos brilharam
quando abriram a porta.
- Jeremy? – ela falou abrindo completamente a porta. – Pelas
renas do papai Noel! Jeremy Wenber!
Eu não sabia que reação era aquela, na verdade não entendi
se era uma pegadinha até que ela pulou em mim, me agarrando pelo pescoço, me
fazendo absorver seu perfume de forma rápida e inesperada me inebriando
completamente. Até que acordei do susto e pude abraça-la já que ela permanecia ali,
como se sentisse minha falta.
- Jeremy! Por onde você andou? – ela falou me soltando e me
olhando. – Cheguei na cidade e fui te procurar e todos falaram que você tinha
sumido no mundo! Entra, entra!
Ela tirou as sacolas da minha mão, colocou no chão e correu
para guardar a bicicleta na varanda, fechou o portão, pegou as sacolas e foi me
empurrando para dentro da casa dela sorrindo, enquanto perguntava da minha
vida. Havia barulho ali mais a frente, mas fui direcionado a cozinha dela onde
ela começou a guardar as coisas enquanto continuava com o questionário sobre a
minha vida.
- E você? – eu perguntei quando ela guardou tudo e parou
sentando-se a minha frente em cima da bancada.
- Sou formada em administração, acredita? Sou eu que
gerencio as doações pro orfanato e os ajudo nas contas, mesmo a distância. Acho
que fazer contas em papel e lápis com meu pai acabou me agradando mesmo. Tenho
uma tatuagem em homenagem a Back to The Future e vou trabalhar em NY quando o
ano novo começar. Sem namorados, sem carro, sem drogas e ainda planejando
visitar as pirâmides do Egito. – ela falou dando de ombros.
- Você não mudou muito então... – eu falei percebendo que
embaixo daquela garota com roupas de marca e um olhar de quem sabia o que
estava fazendo ainda havia aquela garota que se encantava com flocos de neve.
E aquilo doeu bastante, como se tivessem furado meu coração
com mil agulhas grossas e de ponta afiada. Eu ainda amava-a, com todas as
forças que meu coração podia ter. Ela era a razão de eu querer ser o melhor em
qualquer coisa para poder bater na porta do pai dela e dizer que eu podia dar
um futuro pra ela, mas isso era bobagem. Eu nunca cheguei a falar com o pai
dela de fato. Não até ele entrar na cozinha.
Ele parou o que estava fazendo e me olhou, reparou no meu
suéter velho e desbotado e sorriu. Sorriu de verdade.
- Garoto eu nunca esqueço um rosto, e por incrível que
parece nunca esqueço uma roupa também. Principalmente quando ela foi minha. –
ele fez um carinho em Mary Elisabeth que sorriu feliz. – Esse suéter era meu,
sempre gostei dele. O doei há anos atrás para o orfanato da cidade quando minha
barriga simplesmente não entrava nele. – ele apontou pra barriga que estava
grande e riu.
Acabei rindo também, algo que me pareceu estranho depois que
o fiz.
- Rosen pai. – ele falou. – Mas todos me chama de Wilbert, o
barrigudo.
- Jeremy Wenber, antigo morador do orfanato e agora indo
morar em NY. – eu falei.
- Calma garoto. – ele disse. – Não estamos o acusando aqui e
nem querendo saber se cresceu na vida, todos sabem disso. Mary daqui a pouco
vai te chamar de Bruce Wayne, o órfão prodígio de Gothan City. – ele falou
fazendo Mary Elisabeth ficar vermelha. - Fica pro jantar, sua companhia vai ser
muito agradável.
As palavras dele foram carinhosas e eu fiquei confuso me
perguntando se o mundo estava de cabeça pra baixo. Um garoto entrou correndo e
pulou no colo do pai de Mary fazendo ele sorrir ainda mais. Ele era negro,
magro e com olhos claros. Com certeza não era um Rosen de sangue. Ele me olhou
por cima do ombro dele, olhou pra Elisabeth e depois fechou a cara.
- Papai, papai? Porque Mary Elisabeth está namorando na
cozinha? – ele disse.
Papai? Eu me perguntei confuso.
- Não estou namorando na cozinha George. – Mary disse, mas
piscou pra mim.
- PAI! Ela piscou pra ele! Eu vi! – ele falou jogando suas
perninhas no chão, descendo e puxando uma cadeira onde subiu para ficar na
minha altura. – Eu sei o que você está pensando. Só porque sou adotado e novato
nessa família não quer dizer que não possa agir como irmão da Mary. Não quero
beijos na sala, ficar de mãos dadas é permitido e nada de ficarem sozinhos. –
ele desceu da cadeira e foi puxando o pai dele para a sala. – Estou de olho em
você moleque de olhos azuis.
- Jeremy, esse foi meu irmão George. Meu pai o adotou há uns
nove meses e ele já manda mais aqui do que Peter. – ela disse descendo da
bancada onde estava sentada.
- Quem é Peter?
- Peter é meu irmão mais velho, também adotado. Agora fora
ele que está na sala com todos, você só não conhece o cachorro Magrelo do
George, um vira lata preguiçoso e brincalhão. – ela disse se aproximando de
mim.
Eu sorri pensando em como a família Rosen era diferente do
que eu imaginava. Não havia nada de preconceitos neles ou egoísmo. Era uma
família bem mista e divertida eu deduzi ouvindo os latidos de Magrelo na sala e
as risadas que estavam sempre ao fundo. Virei meus olhos para comentar algo,
mas Mary Elisabeth estava na minha frente parada.
- O que foi? – eu perguntei confuso.
- Nada, apenas senti sua falta. – ela falou coçando o braço.
- Também senti sua falta. – eu falei admitindo a verdade
após anos. – Se você não estiver muito ocupada por NY podemos sair e conversar,
não conheço ninguém na cidade.
Ela deu um sorriso enorme, como se de repente tivesse
percebido que havia ganhado o melhor presente de Natal da vida.
- Papai mandou dizer que vai servir a ceia. – George falou entrando
na sala com seus olhos acusadores por eu estar supostamente namorando a irmã
dele.
- Certo. – eu falei seguido por Mary Elisabeth.
Entramos na sala onde Mary me apresentou a todos os
presentes ali: mãe, avós, tios, primos e alguns vizinhos. Havia sem sombra de
duvida umas trinta pessoas ali, espalhadas em mesas menores até que nos
sentamos na mesa central onde fiquei do lado do irmão dela, o Peter que me
elogiou por ter um colar de O Senhor dos Anéis. Era surreal estar ali, como se
eu fizesse parte daquela família. Fiquei pensando naquilo por alguns segundos
até que Mary Elisabeth apertou minha mão por baixo da mesa dizendo que eu tinha
que fazer um pequeno agradecimento antes de comermos.
- Eu queria agradecer a vida que foi bastante dura comiga me
fazendo apreciar e reconhecer muitos valores e acima de tudo a admitir quando
estava errado num conceito. – eu falei conseguindo a atenção de todos ali,
mesmo sem querer. – E a Mary Elisabeth que com apenas um sorriso me fez
acreditar na magia do natal...
- Eu não disse que eles estavam namorando! – George
acusou-me na mesa das crianças fazendo todos me olharem e então começarem a rir.
Eu olhei pro lado, onde Mary Elisabeth ainda segurava minha
mão por baixo da mesa, com as bochechas em fogo, mas sorrindo. Soube naquele
momento que natal era mais do que presentes e doações a orfanatos, era
agradecer a todos as coisas boas que tínhamos na vida. Podia ser ela que havia
feito eu perceber isso naquele momento,não importava tanto.
Pela primeira vez na vida eu disse Feliz Natal desejando que
ele fosse bom de verdade. E sabia que estava sendo...
Feliz Natal a você que
passou por aqui <3